Saturday 19 March 2011

Marcello e o Japão


Tsunami... Terremoto... semana passada foi dedicada a introduzir essas palavras e o que elas significam para o meu grupo de 21 crianças, entre 4 e 6 anos. Estes dias elas provavelmente escutaram bastante essas palavras, viram imagens de um mundo destruído, passam por jornais que talvez estejam abertos na mesa do café da manhã com fotografias de mães abraçando seus filhos ou de casas flutuando entre carros e barcos... a gente as vezes esquece de que "os pequenos" precisam de tradução. Uma tradução que requer tempo e paciência.
Então dividi o grupo em 3 e com cada grupo fiz a mesma coisa. Comecei com a base, o chão. Usei feltro marrom. Aos poucos fomos construindo um mundo, casas de lego, pessoas, animais, plantas, relações foram estabelecidas entre os bonequinhos: Mãe, bebê, avô, amigo, etc... e aí então construímos o mar. Usei meu cachecol de pashmina azul turquesa, espalhado no chão, perto da cidade... barcos, peixes, pessoas que vinham para a praia brincar e voltavam para casa...
e aí então, a terra começou a tremer... primeiro em nossa sala de aula, pedi para que eles se levantassem e brincamos de sentir a terra tremer e mexer embaixo de nossos pés! Foi uma algazarra! Caímos no chão, os chamei para debaixo de uma mesa e fingi que objetos caíam sobre ela, enquanto nos olhávamos com uma mistura de fascínio e excitamento.
Ainda embaixo da mesa, expliquei que as pessoas corriam para fora das casas (não o fizemos pois estava muito frio, nevando, lá fora) pois muitas casas "quebravam". Então voltamos para a nossa cidade, construída à beira mar. Lá, a terra também tremeu. Mexi o feltro que se fazia de chão, as casas caíram, alguns edifícios quebraram e as pessoas corriam para todos os lados. As crianças nem piscavam de tão interessadas que estavam: Terremoto, vocês podem dizer essa palavra? Terremoto. E o que acontecia quando o chão tremia embaixo do mar? Perguntei. Uma onda gigante vêm e entra na cidade, uma menina falou. Num desses dias eu tive uma menininha Japonesa fazendo parte de um desses grupos. Logo no início da história ela reconheceu imediatamente a o que eu me referia: Japão! Minha avó está bem, ela disse, como se repetindo algo que escutou muitas vezes de seus pais: Minha avó está bem!
Sim, quando o chão treme e se mexe debaixo do mar, o mar fica muito agitado e forma ondas muito grandes. E dizendo isso, eu mexi a Pashmina azul turquesa que se levantou e cobriu a cidade já destruída. Aos poucos, trazendo com ela algumas pessoas, animais e casas, a "onda" voltou para seu lugar... E o bebê? Perguntou um garotinho. Ele está bem? Na vida real, a gente sabe que o bebê não estaria bem, necessariamente, mas na nossa estória, baseada em fatos reais, o bebê estava bem. Já o seu cachorrinho... foi levado pela Tsunami. Voces podem dizer essa palavra? Tsunami? Por alguma razão essa palavra foi mais difícil do que terremoto. Numami, mamami, samimu... Tsunami... TSU-NA-MI... ainda estamos trabalhando nisso, mas o que ficou foi a sensação de que, da próxima vez que eles ouvirem essas palavras elas virão acompanhadas de informações, imagens que farão sentido para essa galerinha que está tão distante desse desastre mas que ficou um pouquinho mais perto, mesmo que através da tristeza de saber que um garotinho, em algum lugar desse mundo perdeu o seu cachorrinho que ele tanto gostava.

Empatia, foi a lição dessa semana. Eu cresci escutando que existiam muitas crianças passando fome, na África (não sei porque na África visto que alí mesmo em Recife, nas ruas, já existiam crianças com fome mas talvez pelo fato da África estar tão longe que ninguém se sentiria na obrigação de fazer algo a respeito disso, enquanto que sair de casa e dar "um pulinho" alí na esquina já resolveria muita coisa ). O fato foi que agora me vejo, quando as crianças estão brincando com a comida, trazendo a atenção delas para as crianças que estão no Japão, sem casa e sem comida... E acho que este posting só existiu pois senti a necessidade de dizer algo sobre os comentários superficiais e equivocados, de pessoas que estão "julgando" a forma com que o povo japonês tem expressado sua dor. Na minha forma de ver, com uma dignidade, uma generosidade inigualáveis na história de catástrofes da humanidade. Só porque eles não saíram nas ruas gritando e puxando o cabelo de desespero não quer dizer que não há sofrimento. Quantos de nós já não experimentou o silêncio que se segue a uma notícia trágica? Quando o meu avô morreu, o que existiu entre nós (eu estava com ele no momento de sua morte) foi um silêncio indescritível. Ele sabia que iria morrer, eu segurava a sua mão, me fazendo presente... que palavras podem ser ditas em momentos assim? Vejo imagens de homens e mulheres sentados na rua, olhando para os escombros do que era seu lar, com mãos sobre suas bocas, olhos baixos...
Chorar, choro eu, ouvindo histórias de como uma esposa idosa encorajava seu esposo debilitado a subir a escada, passo a passo, enquanto a água invadia sua casa. Ela dizia: Mais um passo, vamos... a perna direita, agora a esquerda... e de repente ele não ouviu mais nada, olhou para trás e ela já não estava, levada pela água. Nunca tentou passar à frente do marido, nunca gritou com ele nem o chamou de aleijado. Ficou atrás dizendo: Mais um passo. Perna direita, agora a esquerda... chorei por ele que nesse momento, ele não conseguia mais falar, olhou para baixo e se silenciou... O que acontece com pessoas que confundem essa forma profunda de se lidar com a dor com apatia??? Será que agora achamos que todo o mundo reage como nós reagiríamos? Graças a Deus que não pois se assim fosse o caso, o Japão estaria numa situação ainda pior do que se encontra, com pessoas furtando, empurrando, comprando mantimentos para elas mesmas, ignorando pessoas atrás delas nas filas...
Sei que esse senhorzinho que perdeu sua esposa enquanto ela o encorajava a subir as escadas da casa nunca vai esquece-la mas ele não é o único. Apesar de eu nunca saber quem ela foi, nunca conhecer o seu rosto, sua atitude de amor profundo sempre vai ressoar no meu coração. O que desejar para ele, para esse povo? Será que preces os alcançam? Então aqui vão elas, direto de um coração que se une aos seus.

Obrigado pela lição de amorosidade, de tranquilidade, generosidade e força! Após Hiroshima e Nagasaki, após tanta dor, não existiam textos nem movimentos que pudessem contar o nível da tragédia que esse povo sofreu, e assim foi criada uma forma de arte, uma dança que se chama BUTOH. Uma dança que falava sobre as deformações e perdas do povo Japonês... Isadora Duncan dançou sem parar ao saber da morte de seus 2 filhos num acidente de carro. "Foi a única forma que consegui expressar minha dor", ela disse em sua auto-biografia.
Então, só para terminar num tom transcendente e esperançoso, vou citar o poeta sufi Rumi:
"Dança, dança meu coração"!

1 comment:

arosaquefala said...

meu amigo querido, quando você escreve assim, meu coração fica quentinho. Porque o resto é silêncio...