Monday 21 March 2011

Um curto-conto!



Um dia, uma velha numa casa.
Sem luz, sem velas, sem vida.
Com medo, com fome, confusa,
pensou em morrer.

Tudo parecia um sonho...

Na parede da casa existia um espelho.
No espelho, de vez em quando, existia a velha.
Na velha não existia nada, nunca.
Ou melhor: houve uma época em que algo havia existido.
Ou pior: houve uma época em que algo havia existido.

Que cafona!
Que triste!
Que patético.
Que nada...

Ela não conseguia decidir o quê!
E pensava em morrer.
Se ao menos conseguisse achar achar a chave.
Não da gaveta, mas da coragem.
A chave perdida da gaveta onde estava trancado o revólver era apenas uma desculpa para a falta de coragem.

E além do quê, "o qual é a música" havia voltado ao programa do Sílvio aos Domingos e isso era quase motivação o suficiente para que ela não pensasse em morrer.
Mas nada era perfeito...
O Sílvio Caldas, mesmo que voltasse a ser campeão por consecutivas 26 vezes, jamais seria o mesmo.
E o Aguinaldo Rayol?
E o Nelson Ned? Imagine... confessou num programa da TV Evangélica que era viciado em sexo! O Nelson Ned!!! E usava drogas... o Nelson Ned!!! E transava com 3 ou 4 mulheres ao mesmo tempo... O NELSON NED!!!!
Quem diria, Meu Deus, o Nelson Ned!!!
Tão... tão... baixinho... o Nelson Ned!
E o chacrinha? Por que não mostram mais o programa dele?
Era tão... tão...
Ah, é! O Chacrinha morreu!!!
Mas a Elke Maravilha não. Ela é tão... tão...
alta!
Mas e a Wilza Carla? E o Décio Pitinini e o Pedro de Lara???
Eles eram tão... tão...
tão...
E assim ela passava o dia,
Procurando adjetivos para classificar os fantasmas mortos e vivos de seu passado tão presente.
Na verdade, quando ela não achava os adjetivos era quando se sentia melhor.
Dava um vaziiiiioooooo... um vaziiiiiiooooooo
Um vazio tão gostosoooooo...

Estes eram os únicos momentos em sua vida não preenchidos pelas imagens de Pepe, o dublador e a sua companheira Virgínia, com a cara toda melecada de purpurina...
Ou da voz do chacrinha jogando o bacalhau da maria Bethania em cima do auditório,
ou a musiquinha do APRACU...

Tudo era tão...
Tão...
tão...

Sunday 20 March 2011

Marcello & Karen Blixen



Numa manhã ensolarada de Domingo, de 1994, fui visitar a casa de Karen Blixen em Rungsted, que fica a mais ou menos 30 minutos, de carro, de Copenhagen.
Eu tenho um certo fascínio por ela, desde que assisti ao filme "Out of Africa" com a Meryl Streep encarnando a Baronesa. Interessante que o meu fascínio por ela tenha se dado primeiro por sua personalidade, a sua história de vida, e isso tenha me levado a conhecer os seus livros. Geralmente esta ordem se inverte: Voce lê algo, se identifica, e então fica curioso sobre o autor da obra.
Entre os meus favoritos de Isak Dinesen (nome masculino com o qual ela assinava seus livros no início de sua carreira como escritora) está "A festa de Babete". Não apenas pelo valor literário em si, mas pela linda analogia sobre as opções que fazemos na vida, o prazer que extraímos, ou não, dela, o papel da culpa religiosa (nesse caso Protestante) na infelicidade humana e também a beleza de exercemos a nossa profissão/Dom pelo simples deleite de podermos oferecer o nosso melhor para o mundo à nossa volta, como um presente!

Não dei sorte. O Horário de visitação havia se encerrado. Como eu não queria perder a viagem fiquei ali, pelo jardim que era lindo. Não tinha ninguém em volta, a casa grande, bem cuidada, estilo tradicional Dinamarquês, uma casa de Fazenda à beira Mar... me arrisquei, chegando bem perto da casa. Olhei através de uma janela, a luz era difusa mas pude ver alguns móveis, poltronas e vendo assim, do lado de fora, como eu não via os avisos de "por favor não tocar", tudo parecia vivo e não um display de um museu. Até mesmo um arranjo de flores frescas se encontrava no meio da mesa de Jantar. Retratos, máscaras Africanas e ela, ali, dando os últimos toques no arranjo de hortênsias colhidas de seu jardim. Ela me viu e sorriu. Me convidou para entrar e tomar um chá. O dia estava tão lindo que propus outra coisa: Karen, vamos dar uma caminhada pela praia. Eu sabia que ela adorava estas caminhadas. Ela veio, envolta em uma linda e colorida manta de algodão indiano.
Nós caminhamos por um momento, ela já estava muito debilitada, nos sentamos na areia olhando para o mar... assim seria a nossa relação... não precisaríamos falar muito.

De qualquer forma a Rua estava repleta de carros estacionados à frente de sua casa, a praia muito cheia de gente e bundas Dinamarquesas, fluorescentes de tão brancas, e até mesmo latas de cerveja e refrigerante espalhadas em volta de uma lixeira já bastante cheia. Vivemos num mundo de tanto conforto, tanto avanço tecnológico e tanto isso e tanto e tanto e tanto e só não sabemos de uma coisa: Quão deliciosa deveria ter sido a vida sem isso e sem aquilo e sem aquilo outro também!

Fui para os fundos de sua casa, existe um lago lindo e, na beira do lago, um banquinho de madeira, quase escondido por entre arbustos e árvores. Me sentei ali, longe do barulho que vinha da praia, olhei para o céu azul Copenhagen, olhei para as plantas à minha volta (muitas delas exóticas) e me perguntei se ela mesma havia plantado as flores de seu jardim.
Fui sentindo uma paz gostosa... fiquei ali em silêncio e o silêncio foi entrando em mim, fazendo aquela paz gostosa que eu estava sentindo se expandir e se fundir com o silêncio, criando um daqueles mágicos momentos onde nos sentimos um com a brisa, o cheiro das plantas, a luz do Sol... o tempo foi passando suavemente, em silêncio... o Sol já até mesmo havia se afastado quando uma suave mão, branca e magra, pousou em meu ombro... Confesso que me assustei um pouco visto que acredito em vida depois da morte. Me virei abruptamente e vi uma mulher de cabelos grisalhos com um sorriso discreto de reconhecimento em seus lábios.
Ela era magra e não muito alta. Era Clara Selborn. Ela havia sido a secretária Pessoal de Karen por muitos e muitos anos e agora gerenciava tudo o que envolvia o nome Karen Blixen. Isso tudo eu vim a saber após nosso "encontro". Ela foi muito gentil e me falou sobre os horários de visitação da casa. Eu agredeci, me levantei e fui andando, ela veio junto a mim e disse num tom saudoso: "Sabe, voce estava sentado exatamente no lugar favorito da Baronesa. Ela vinha para cá, todas as tardes, nesta mesma hora, e ficava contemplando o jardim, em silêncio"...

E assim foi... minha tarde em silêncio, em companhia de Karen Blixen.

Saturday 19 March 2011

Marcello e o Japão


Tsunami... Terremoto... semana passada foi dedicada a introduzir essas palavras e o que elas significam para o meu grupo de 21 crianças, entre 4 e 6 anos. Estes dias elas provavelmente escutaram bastante essas palavras, viram imagens de um mundo destruído, passam por jornais que talvez estejam abertos na mesa do café da manhã com fotografias de mães abraçando seus filhos ou de casas flutuando entre carros e barcos... a gente as vezes esquece de que "os pequenos" precisam de tradução. Uma tradução que requer tempo e paciência.
Então dividi o grupo em 3 e com cada grupo fiz a mesma coisa. Comecei com a base, o chão. Usei feltro marrom. Aos poucos fomos construindo um mundo, casas de lego, pessoas, animais, plantas, relações foram estabelecidas entre os bonequinhos: Mãe, bebê, avô, amigo, etc... e aí então construímos o mar. Usei meu cachecol de pashmina azul turquesa, espalhado no chão, perto da cidade... barcos, peixes, pessoas que vinham para a praia brincar e voltavam para casa...
e aí então, a terra começou a tremer... primeiro em nossa sala de aula, pedi para que eles se levantassem e brincamos de sentir a terra tremer e mexer embaixo de nossos pés! Foi uma algazarra! Caímos no chão, os chamei para debaixo de uma mesa e fingi que objetos caíam sobre ela, enquanto nos olhávamos com uma mistura de fascínio e excitamento.
Ainda embaixo da mesa, expliquei que as pessoas corriam para fora das casas (não o fizemos pois estava muito frio, nevando, lá fora) pois muitas casas "quebravam". Então voltamos para a nossa cidade, construída à beira mar. Lá, a terra também tremeu. Mexi o feltro que se fazia de chão, as casas caíram, alguns edifícios quebraram e as pessoas corriam para todos os lados. As crianças nem piscavam de tão interessadas que estavam: Terremoto, vocês podem dizer essa palavra? Terremoto. E o que acontecia quando o chão tremia embaixo do mar? Perguntei. Uma onda gigante vêm e entra na cidade, uma menina falou. Num desses dias eu tive uma menininha Japonesa fazendo parte de um desses grupos. Logo no início da história ela reconheceu imediatamente a o que eu me referia: Japão! Minha avó está bem, ela disse, como se repetindo algo que escutou muitas vezes de seus pais: Minha avó está bem!
Sim, quando o chão treme e se mexe debaixo do mar, o mar fica muito agitado e forma ondas muito grandes. E dizendo isso, eu mexi a Pashmina azul turquesa que se levantou e cobriu a cidade já destruída. Aos poucos, trazendo com ela algumas pessoas, animais e casas, a "onda" voltou para seu lugar... E o bebê? Perguntou um garotinho. Ele está bem? Na vida real, a gente sabe que o bebê não estaria bem, necessariamente, mas na nossa estória, baseada em fatos reais, o bebê estava bem. Já o seu cachorrinho... foi levado pela Tsunami. Voces podem dizer essa palavra? Tsunami? Por alguma razão essa palavra foi mais difícil do que terremoto. Numami, mamami, samimu... Tsunami... TSU-NA-MI... ainda estamos trabalhando nisso, mas o que ficou foi a sensação de que, da próxima vez que eles ouvirem essas palavras elas virão acompanhadas de informações, imagens que farão sentido para essa galerinha que está tão distante desse desastre mas que ficou um pouquinho mais perto, mesmo que através da tristeza de saber que um garotinho, em algum lugar desse mundo perdeu o seu cachorrinho que ele tanto gostava.

Empatia, foi a lição dessa semana. Eu cresci escutando que existiam muitas crianças passando fome, na África (não sei porque na África visto que alí mesmo em Recife, nas ruas, já existiam crianças com fome mas talvez pelo fato da África estar tão longe que ninguém se sentiria na obrigação de fazer algo a respeito disso, enquanto que sair de casa e dar "um pulinho" alí na esquina já resolveria muita coisa ). O fato foi que agora me vejo, quando as crianças estão brincando com a comida, trazendo a atenção delas para as crianças que estão no Japão, sem casa e sem comida... E acho que este posting só existiu pois senti a necessidade de dizer algo sobre os comentários superficiais e equivocados, de pessoas que estão "julgando" a forma com que o povo japonês tem expressado sua dor. Na minha forma de ver, com uma dignidade, uma generosidade inigualáveis na história de catástrofes da humanidade. Só porque eles não saíram nas ruas gritando e puxando o cabelo de desespero não quer dizer que não há sofrimento. Quantos de nós já não experimentou o silêncio que se segue a uma notícia trágica? Quando o meu avô morreu, o que existiu entre nós (eu estava com ele no momento de sua morte) foi um silêncio indescritível. Ele sabia que iria morrer, eu segurava a sua mão, me fazendo presente... que palavras podem ser ditas em momentos assim? Vejo imagens de homens e mulheres sentados na rua, olhando para os escombros do que era seu lar, com mãos sobre suas bocas, olhos baixos...
Chorar, choro eu, ouvindo histórias de como uma esposa idosa encorajava seu esposo debilitado a subir a escada, passo a passo, enquanto a água invadia sua casa. Ela dizia: Mais um passo, vamos... a perna direita, agora a esquerda... e de repente ele não ouviu mais nada, olhou para trás e ela já não estava, levada pela água. Nunca tentou passar à frente do marido, nunca gritou com ele nem o chamou de aleijado. Ficou atrás dizendo: Mais um passo. Perna direita, agora a esquerda... chorei por ele que nesse momento, ele não conseguia mais falar, olhou para baixo e se silenciou... O que acontece com pessoas que confundem essa forma profunda de se lidar com a dor com apatia??? Será que agora achamos que todo o mundo reage como nós reagiríamos? Graças a Deus que não pois se assim fosse o caso, o Japão estaria numa situação ainda pior do que se encontra, com pessoas furtando, empurrando, comprando mantimentos para elas mesmas, ignorando pessoas atrás delas nas filas...
Sei que esse senhorzinho que perdeu sua esposa enquanto ela o encorajava a subir as escadas da casa nunca vai esquece-la mas ele não é o único. Apesar de eu nunca saber quem ela foi, nunca conhecer o seu rosto, sua atitude de amor profundo sempre vai ressoar no meu coração. O que desejar para ele, para esse povo? Será que preces os alcançam? Então aqui vão elas, direto de um coração que se une aos seus.

Obrigado pela lição de amorosidade, de tranquilidade, generosidade e força! Após Hiroshima e Nagasaki, após tanta dor, não existiam textos nem movimentos que pudessem contar o nível da tragédia que esse povo sofreu, e assim foi criada uma forma de arte, uma dança que se chama BUTOH. Uma dança que falava sobre as deformações e perdas do povo Japonês... Isadora Duncan dançou sem parar ao saber da morte de seus 2 filhos num acidente de carro. "Foi a única forma que consegui expressar minha dor", ela disse em sua auto-biografia.
Então, só para terminar num tom transcendente e esperançoso, vou citar o poeta sufi Rumi:
"Dança, dança meu coração"!

Thursday 10 March 2011

Marcello e o perfume de TUTANCÂMON


Cheiros... Não existe nenhuma novidade no fato de que cheiros tem o poder de liberar memórias, trazer à tona as emoções exatas que sentimos num determinado momento onde determinada fragrância se fazia presente. Não só uma emoção específica, mas muitas vezes também a impressão, as cores, sons e sensações de uma época. Isto para não falar de pessoas... cheiros que serão para sempre associados a indivíduos e o que sentíamos por estes indivíduos: M. só usava Kouros, A. teve a fase de Jazz do Saint Laurent, L. poderia até mesmo trocar o seu nome para Armani, minha avó Dior, minha mãe Caron, meu pai English lavanda Aktinsons, um tio Pinho silvestre, uma tia Giorgio de Beverly Hills, a casa do Rio flores secas no saguão e maresia, a casa de Olinda cera de chão e verde do jardim, e assim sigo a vida não conseguindo ignorar o cheiro do mundo à minha volta. Este fascínio se desenvolveu numa busca por essências especiais, óleos aromatizados, perfumes históricos e, mais importante, o poder que cada uma dessas essências tem em me fazer sentir assim ou assado! Tenho o perfume que era o favorito de Maria Callas, e quando o uso (só em ocasiões muito especiais) invoco o poder da musa máxima, do talento sem concessões. Tenho também o favorito do Winston Churchill, e quando o uso é impossível não sentir a elegância de uma época de cavalheirismos onde decisões que mudariam o mundo eram tomadas em salas com sofás de couro e bibliotecas bem cuidadas. Fico imaginando que era esse o cheiro que ficava no ar quando Churchill entrava no recinto (provavelmente misturado a um insuportável cheiro de charuto) ou era o rastro que La Callas deixava ao sair do palco sendo ovacionada após mais uma impecável ária.

Tendo dito isto, voce pode imaginar como fiquei excitado ao saber que na Harrods em Londres existia uma sessão de "Alta-perfumaria". Hmmm, pensei, da próxima vez que estiver lá...
E assim foi: quando fui a Londres no Natal passado, fui correndo à Harrods para visitar tal templo. Só que eu não consegui achar. Fui na parte dos perfumes, Calvin Klein, Dior, Prada, tudo estava em promoção, parecia carnaval em Olinda, pessoas andando levadas por blocos de outras pessoas que agarravam as caixas de perfume com 50% de desconto... de alguma forma isso não parecia ser o lugar citado pela reportagem que li. Perguntei a um funcionário da loja: Dá licença, existe uma sessão de "Alta-perfumaria" aqui? O funcionário olhou para mim como se de repente eu houvesse dito um código secreto, algo tão misterioso quanto o código Da Vince. E ele não respondeu imediatamente, foi como se estivesse me estudando, querendo chegar a conclusão se me seria permitida a entrada no compartimento secreto. Baixinho, depois de alguns segundos, ele disse: Escada rolante, quinto andar, passa isso, passa aquilo, vira a esquerda, a direita, entra na cafeteria, tem uma porta que dá para os fundos, entra, vai em frente e voce chega lá! Eu sou meio desorientado e tive certeza de que nunca a encontraria, mas fui indo... e cheguei... em frente a uma porta que parecia mesmo dar nos fundos da loja, saída de lixo... não pode ser... mas não havia outra opção, eu estava completamente desapontado, esperava uma coisa assim... meio sei lá o que... mas empurrei a porta de borracha, daquelas duplas onde carrinhos carregando dejetos passam... e aí sim, percebi que era lá... o tal templo olfativo... não havia dúvidas, era lá! Tudo era cristal e espelhos, tantos potes e frascos, cada qual mais impressionante que o outro, tudo se confundia no próprio reflexo de outros frascos de cristais e mais espelhos que fiquei atordoado, era difícil encontrar o caminho por entre os reflexos e mais cristais, enquanto toda a loja explodia de gente tentando comprar os últimos presentes de Natal, em liquidação, eu era o único cliente nesse espaço silencioso e sagrado: De cima à baixo, essências em potes de ouro, cristais e alguns até mesmo decorados com pedras preciosas. Nessa hora ou voce sai correndo antes que alguém venha perguntar se voce está procurando por alguma coisa específica ou respira fundo e faz de conta que alí mesmo, dentro da sua carteira, existe um cartão de crédito capaz de pagar por qualquer um daqueles objetos do desejo... e claro, foi isso que fiz quando um atendente de sutil e discreta elegância se aproximou perguntando se eu estava em busca de algo específico. Na verdade, disse eu, estou a procura de uma essência que seja bem próxima de mim. Apesar da minha resposta um tanto vaga, ele aquiesceu e me pediu para segui-lo. Ele então trouxe algumas amostras, elas representavam diferentes famílias olfativas: umas eram mais doces, outras cítricas, outras repletas de especiarias e assim por diante. Eu descartava algumas e entre as que ficavam, ele trazia sub-divisões que seguiam a direção de meus sentidos. Fui apresentado a fragrâncias que nunca havia sequer sonhado, mas não, nada ainda havia me "atingido" como eu esperava. Confiando na minha sensibilidade olfativa eu esperava que em determinado momento eu fosse atingido por um raio que dissesse: Achei, é isso: esse cheiro traduz a minha essência. Na verdade eu estava até mesmo um pouco desapontado: se não encontrasse alí o que buscava, onde mais? E fui sincero com o atendente (na verdade, confesso que até com um certo alívio pois vai que eu encontrasse o que buscava, e aí? E se fosse algo dentro de um tesouro encrustrado de diamantes?), já estava quase indo embora quando ele disse: existe um que eu ainda não mostrei... ele me levou para um cantinho da loja, abriu uma gaveta, tirou um pequeno frasco sem nenhum rótulo e espreeou à minha volta. O tempo parou! E não estou exagerando... eu fui envolto numa suave núvem de um cheiro que eu nunca havia sentido antes. Ele possuía um frescor, uma riqueza de notas que eu não conseguia identificar mas que fizeram meus sentidos responder imediatamente, como se eu houvesse sido elevado para uma outra dimensão. É isso! Falei, é esse, achei... o que é isso???
Ele deu um sorrizinho de reconhecimento, como se não esperasse uma reação diferente da que tive: É o perfume de TUTANCÂMON! Com o perdão da expressão, tudo o que eu queria ter dito foi: CUMA??? Mas como isso não teria nenhum sentido em Inglês, eu simplesmente perguntei: como assim? E ele esclareceu: dentre os tesouros encontrados na Tumba de Tutancâmon, próximo ao seu corpo, foi encontrada a receita de um perfume. Provavelmente a mais antiga receita encontrada de um perfume. A receita foi comprada por um valor não revelado, por uma famosa casa de perfumes e patenteada, ninguém mais no mundo tem o direito de comercializar essa fragrância e blablabla... eu não estava muito presente durante essas explicações, o cheiro que emanava de mim, me embriagava e imaginei o Faraó, representação Divina na Terra, andando por corredores arejados, passando por varandas com vista para o Nilo e seus hipopótamos, tamareiras e barcos de pesca, adorando o Deus Sol...
Sim, ele na verdade vinha num frasco criado pela casa Bacarat com ouro e pedras preciosas... ao ver a minha cara de decepção ao ouvir o preço, ele deu mais umas 3 espreiadas no meu pescoço antes de eu dizer adeus, pensando em quantos anos eu teria que juntar dinheiro para poder ter aquela essência divina... entendi o que viciado em Crack não é capaz de fazer por mais uma pedra... levitei por todo o percurso de volta para casa onde minha mãe e irmã riram de minha ingenuidade em acreditar que aquilo era mesmo o que o vendedor dizia ser... elas não entendem, pensei... elas sentiram o perfume e o sorrizinho cínico logo desapareceu de seus lábios... sim, era algo especial... mas TUTANCÂMON?
Eu não tinha dúvidas, o cheiro em si me fazia sentir imortal, como se tudo fosse possível e o mundo brilhasse como uma jóia rara preciosa.
Não comprei o tal... mas dedicado e determinado que sou, pesquisando as notas do Perfume, blogs de especialistas e comentários de apaixonados por perfumes, encontrei um outro que chegava perto... era o que diziam, só era difícil de achar, me garantiram. Entrei na primeira loja de perfumes que vi, perguntei pelo nome, eles tinham. Comprei. Não é a mesma coisa, mas me lembra bastante a experiência que tive. Todo o dia o uso, pessoas comentam: o que é isso? E eu digo, é um genérico do TUTANCÂMON! E como dizia o Pirandello: Assim é, se lhe parece!